Crónicas escritas pelo Professor Jorge Marrão, AE de Santa Catarina
1. Partir e chegar
Beijing, 11 de Setembro de 2024
Primeiro a ansiedade de chegar ao nosso aeroporto e expectativa de encontrar o grupo no ponto de encontro.
Jovens, pais professores, comitiva da Câmara Municipal de Oeiras, a começar pelo Presidente, bem-dispostos e o gelo quebrou, como é típico dos portugueses, com conversas por tudo e por nada, com fotos, vídeos ou o maldizer das longas esperas e filas. Depois o adeus!
Lisboa é sempre uma surpresa: tudo a postos para descolar e um incêndio nas imediações provoca o cancelamento da descolagem. Mas partimos, quem parte quer chegar e bem. Num instante Paris. Mas de Paris só o nome... Correria para o terminal de embarque para Beijing, é assim que os chineses querem que se diga, o baptizado português não lhes agrada depois de tanto tempo Pequim, para ocidentais. Um passaporte perdido, um saco esquecido…vicissitudes, nervos e Beijing a 10:30 de distância. O 777 cumpriu.
Mas quem cumpriu foi esta comitiva sempre jovial, animada pelos jovens: aquela ilha do 777 foi, nessas longas horas pelos ares, a única centelha de reboliço, alegria e vida. Sim, os jovens e os outros que não vão para novos deram ânimo ao tempo morto, e entre gente sisuda edificaram um certo reino de convivência que só o português sabe celebrar.
E o champanhe, o conhaque, o vinho francês de terceira, Sr. professor e finalistas de medicina?...as gargalhadas dos caloiros, até as atarefadas aeromoças sorriam largamente, quebrando rotinas tão sérias. Mas melhor: a nata intelectual do concelho de Oeiras, sosseguem, pais, sossegue a ciência, passou horas e horas na Matemática, na Álgebra, na Física...no Direito, na Literatura, por isso é que os aviões levantam, voam e aterram!
Muitos sonos, sonos frágeis, insónias, filmes, passeios na coxia, e Beijing aparece ali de repente sob nossos pés, como nos sonhos.
Fiscalizações, sim. Ficámos logo com bons rudimentos de controlo: o Sr. Presidente Isaltino que o diga :). Devia ter o curriculum desactualizado!
Aliciante é também o mundo da tecnologia...dados móveis, catões sim, eSins...VPN…, enfim, esta floresta lexical estupenda da era moderna consumiu outro tanto tempo, diacho, toda a gente quer comunicar.
Também começámos a experimentar a disciplina chinesa...e gostam muito de nós: a cada passo uma foto. As más-línguas, que também abundam, dizem que vão direitinhas para os ficheiros da polícia!
Por fim, o primeiro jantarinho às cegas. Ninguém sabe o que comeu verdadeiramente, mas estava excelente. Cumpridores da etiqueta, às 9:30 em ponto, estávamos todos recolhidos.
Já está tudo na caminha. Já diz o nosso velho ditado: deitar cedo...deste parece que até os chineses gostam! Não dizem que imitam bem? Além disso, isto é uma visita de trabalho.
Viva Oeiras!
2. O futuro aqui
Beijing, 12 de Setembro de 2024
O dia de hoje pode ser dividido em três etapas. Lapalisse não diria melhor: manhã, tarde e noite!
Mas não...
Primeiro: o acordar em Beijing é igual a qualquer outro, e não fosse o grasnar intenso dos gansos, donos do lago e do jardim defronte dos aposentos, o sono iria mais longe.
O dia começou muito protocolar, tendo a comitiva sido recebida por altos dignitários locais e escolares, com o modo de receber pontual e peculiar deste povo. Notou-se grande interesse e estima pelos laços que já unem Oeiras e o distrito de Dongcheng - Beijing, uma área administrativa com mais de 6.000.000 de habitantes, bem como um pujante desenvolvimento tecnológico. A visita, pelas honras protocolares, certamente cimentará a cooperação, como os diversos intervenientes afirmaram, nomeadamente o Presidente, Dr. Isaltino Morais, que teima em desenvolver Oeiras, para o bem-estar e estímulo dos oeirenses, essencialmente dos mais jovens, que podem experimentar de perto a centralidade e o apoio que a edilidade projeta na educação e na formação; pela luta em captar investimentos de alto valor acrescentado, duas certezas e dois elevadores sociais interdependentes e determinantes em tempos tão incertos.
Mas, apesar disso, o optimismo destes convénios ajusta-se também ao optimismo dos jovens, essa boa onda, que permite abertura ao outro no respeito pelas diferenças, e isso ficou bem evidente na facilidade com que os nossos alunos conversaram com os seus pares chineses, que um dia visitarão Oeiras e também ficarão a conhecer a nossa hospitalidade. Para colher é preciso semear e hoje sentiu-se que cada um se tornou mais um embaixador desta sementeira.
A segunda parte do dia foi passada em empresas de alta tecnologia e IA, a Intel e a Mobo.
A Intel, conhecida desde os processadores mais rudimentares, como o pentium, actua hoje em vastos domínios, como a computação, a robótica, a saúde, a educação; na Mobo fizemos uma viagem ao futuro, que é hoje. A centralidade desta empresa é a mobilidade e a gestão dos transportes autónomos, que já é realidade nalgumas cidades chinesas em serviços determinados.
A terceira parte, brilhante a seu modo, porque se tratou de convívio mais informal: visitas a monumentos, arte, pastelaria, restaurante!
Foi nesta altura que o Sr. Presidente assumiu as suas amplamente conhecidas funções de pivô (que novidade lá dirão os detratores) em plena pastelaria típica chinesa.
Do jantar que dizer? Ainda não foi desta que vieram os escorpiões, será que vamos a caminho de uma decepção, senhor Presidente? Quanto ao que importa já viram algumas fotos.
O resto..., a estas horas a pena treme... E temo faltar à verdade, mas hão-de saber, do tal resto, sem dúvida, é só esperar!
3. Falta de comparência
Beijing, 13 de Setembro de 2024
Terceiro dia: os chineses não param de nos surpreender, excepto a nossa guia!
Para cumprir a preceito o calendário estabelecido, depois do pequeno almoço e de uma noite de aventuras para alguns... fomos ao centro de treino de ténis de mesa da escola secundária.
O monitor bem se esforçou por levar a cabo a empreitada de nos tornar competidores olímpicos contra nós mesmos. Claro, de certeza que um olho zeloso, que os há por todo o lado e numerosos, foi dizer aos nossos adversários (alunos chineses) que não valeria a pena comparecer no campo da peleja! E não apareceram mesmo, tivemos de jogar uns contra os outros, pelo que assistimos a partidas enfadonhas. Não fica bem, mas é meu dever, como cronista, não inventar e dizer a verdade e só a verdade. Assim sendo, os antagonistas preferiram ficar numa aula de História, de Física ou Chinês clássico, a divertirem-se com os irreverentes lusitanos de Oeiras.
De tarde, não vou falar do poema homónimo de Cesário, aí! não, descansem! Mas a tarde foi passada entre Tienamen e a Cidade Proibida. Da primeira aprendemos a história grandiosa da sua construção, a sua simbologia, sobre o mausoléu de Mao, sobre o Palácio do povo, sobre o Museu nacional chinês, mas dos jovens de 89 nada. Só alguns de nós imaginamos (pura miragem ou quimera) um tanque a esmagar jovens até que um parou mesmo em frente de um jovem. E o que aconteceu ao militar condutor do tanque por ter poupado umas vidas e ao jovem poupado? Nunca nos dirão, embora se adivinhe, todavia, como já disse, aqui só interessa a verdade, nada de ficções!
Continuamos a ser fotografados. Não gosto disso, ninguém gosta, mas acham-nos bonitos e bonitas, contra isso não há nada a fazer: em Roma devemos ser romanos.
Outra coisa que admiro e podemos admirar nos chineses é a sua capacidade de construir, como é o caso da Cidade Proibida com centenas de edifícios e as suas 90 praças. Finalmente uma transgressão aceitável: invadir a cidade proibida sem nunca olhar para trás. Ali o lema é sempre em frente, pois a visita é orientada sempre, literalmente, no sentido sul norte. Não é por mal, nem pela imposição, ou pela falta de liberdade (ai o livre arbítrio) julgo que é para orientar os visitantes, não vão ficar alguns perdidos nalgum recanto da cidade a fazer coisas proibidas. Assim, como qualquer rebanho, temos a certeza que saímos do labirinto e todo o visitante, sem se maçar, chegará a casa.
A entrada é imponente e lá está o pai da china, Mao Tsé Tung, sorridente por nos receber e ver tanta gente venerando-o.
Do que mais gostei do sítio, falo por todos, porque aqui é assim, um diz tudo e basta, foi de nos enxotarem da Cidade Proibida, mal bateram as cinco da tarde, como quem enxota moscas, ou leva animais para os estábulos. Lá está, há gente que zela pelo nosso bem-estar e segurança, pela harmonia e concórdia, que nos ensina o caminho...
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces", querem melhor!
4. O céu e o inferno
Beijing, 14 de Setembro de 2024
Hoje vamos falar com seriedade, nada mais nada menos de céu e de inferno.
O dia foi bem preenchido e começou com uma sessão de pintura tradicional chinesa e contou com empenhados monitores e alunos numa sala especial para o efeito.
Era ver todos os participantes embevecidos e cientes de que estavam a representar folhas de bambu, como havia sido exemplificado, mas nalguns casos mais parecia folhagem de oliveira e castanheiro.
Mas menos mal: pior para alguns, porque muitos conseguiram perfeitamente os objectivos, foi quando tentaram escrever em Chinês palavras como felicidade, bem-estar e outros conceitos docinhos. Não foi fácil desenhar bicicletas, chapéus, carruagens, charretes, janelas, carrinhos de mão, etc., todavia o que conta é a participação, por isso certamente os professores deram boa nota a todos.
O almoço foi aprovado com distinção e depois seguimos com entusiasmo rumo ao Palácio do Céu, local de culto, só que para chegar lá foi preciso passar pelo inferno do trânsito de Beijing, sem purgatório, logo directos do inferno ao Céu. Na verdade, é um local aprazível, onde vicejam arvoredos antigos e muita gente, que aqui não falta, peregrinando.
Abençoados, seguimos para o Palácio de Verão, mas o inferno do trânsito primeiro, mas chegámos.
O Palácio de Verão é uma quintarola e pêras, nota-se que os imperadores tinham bom gosto e gasto. Espaço natural e arquitectónico bem conservado, um lago imenso e uma tarde setembrina que deslizou serena e doce, propícia a passos lentos, olhares cúmplices, fotografias engenhosas nas suas poses, como se quisessem eternizar o momento.
Está quase: mais trânsito e o jantar de mesas fartas, com um colorido que lhe é peculiar e até o frango na travessa com cabeça, bico e tudo que parecia querer debicar o Gabriel!
O cronista descambou: céu, inferno... isto afinal é uma paródia!
5. Quando somos iludidos
Beijing, 15 de Setembro de 2024
Hoje concluímos que a muralha da China não existe.
O que há é apenas The Great Wall, ou seja, a grande parede. Sempre pensei que os chineses não fossem tão asnos ao deixarem colocar tal rótulo num símbolo imperial de dimensões titânicas. Mas não, lá está no vilarejo de Mutianyu a letras douradas a subtracção cultural, só por causa dos € ou $ ou £, afinal o que faz andar o mundo. E perguntam, o cronista hoje está de mau humor, que terá contra povo tão fino e arguto, como o chinês?
Na verdade, fomos convidados a ver a grande muralha e não a grande parede. Primeira ilusão. Ora os chineses não sabem destas grandes diferenças: wall (parede no idioma luso) não é muralha como qualquer camponês sabe. Wall é muro: de cortinhas (hortas), parede de intimidade dos quartos, muralha da China? Que pobreza lexical! Os chineses deviam ter consultado os portugueses e colocar ali bem visível Muralha.
Outra questão pertinente é o trabalho que os imperadores tiveram para edificar tal obra. A acreditar nos guias, de certeza que nem havia pedreiros, nem boieiros, nem calceteiros, nem cozinheiros, os imperadores trataram de tudo! De facto, não há alusões aos que realmente a construíram. Mas imagina-se como foi. Os imperadores imperavam e não gastavam tempo a lançar concursos: olha ali aqueles homens que estão a tratar das leiras, ala para a muralha a abrir caboucos, olha aqueles coreanos que saltaram a fronteira, toca a vergar a mola com pá e pica, olha os mongóis distraídos, vamos lá acarretar pedras, Dêem uma mãozinha, é só por uns dias que se transformaram em séculos. Cá para mim foi assim.
Outra ilusão de hoje foi acerca do valor do dinheiro. Deram aos filhos uns yauns, não foi? Ora, tal como os trabalhadores da muralha, também foram prisioneiros, vá só por uns dias, não se aflijam, mas hoje soltaram-se as grilhetas e toca a derreter o vil metal! Nunca vi tanta necessidade de acabar com o dinheiro numa hora. Aqui só ficou triste quem ficou com algum yaun no bolso. Falo por mim que estou aliviado e feliz de tanto regatear, deixei-os todinhos no mercado. E esta é a segunda ilusão. Parecia que o dinheiro tinha de ficar ali porque nada valia no bolso. Mas previno já os familiares que não vão ter aparadores, paredes, mesinhas de cabeceira...para arrumar a tralha que vai daqui.
A terceira ilusão é a mais potente. Pensem enganar o presidente Isaltino!
Pois bem, não sei se por efeitos de baco, mas não, afianço desde já que não, um jovem, o Duarte, ludibriou-o com as cartas e a todos os presentes numa sessão de magia (momento alto, sem dúvidas) as vezes que quis. E reparem bem, algumas a pedido do Sr. Doutor, que, num momento de fragilidade e confidência, aqui em família de onde nada sai, acabou por nos revelar também os seus dotes nestas ciências ocultas. Esta faceta de o Sr. Presidente ludibriar alguém é que os Oeirenses desconheciam certamente. Sejamos francos: não é para nos irmos conhecendo que servem os convívios?
6. Gratidão e despedida
Beijing, 16 de Setembro de 2024
Hoje o dia, aqui por Beijing, fica marcado pela partilha (embora todos tenham sido isso mesmo), pela gratidão e pela despedida.
A partilha irmana os seres humanos e a gratidão é dos gestos mais poderosos que podemos cultivar na nossa vida. Têm um efeito directo nos dois sentidos como o que se dá e o que recebe, mas a atitude contagia também os que testemunham esses gestos humanos que por vezes tendemos a esquecer, por isso convém dar testemunho dos bons exemplos.
De facto, os jovens, no dia de hoje, tiveram uma oportunidade única de, apesar dos 12.000 km que separam Oeiras de Pequim, verificar que a verdadeira humanidade, seja em que latitude ou longitude for, comunga dos mesmos sonhos, desejos e receios, das alegrias e tristezas, como ficou demonstrado ao partilharem tempo de convívio com famílias de Pequim. Nessa medida, na diversidade e a valorização das pequenas e grandes conquistas do dia a dia pode não ser material e decerto não é mercantilizada, mas sim pessoal e intransmissível, como é toda a experiência dos afectos. Por sua vez, a partilha ajuda-nos a mudar a perspectiva sobre o outro, enfatizando os momentos de aprendizagem que nos ajudam a crescer. Quando expressamos gratidão, não apenas fortalecemos as nossas relações, mas também promovemos o bem-estar emocional, porque o outro recebe esse reconhecimento desinteressadamente.
Testemunhos desta natureza atingiram o seu ponto alto hoje, quando os jovens escreveram e leram um texto de agradecimento ao Sr. Presidente, Dr. Isaltino Morais, por esta experiência extraordinária que a Câmara Municipal de Oeiras proporcionou aos estudantes, em reconhecimento do mérito (gesto singelo de gratidão) do desempenho escolar dos jovens e da sua formação cívica, que são dois pilares que sustentam o presente e auguram um futuro de realizações. Aqui e ali franziam-se sobrancelhas e as pálpebras humedeciam como se o orvalho jovial se quisesse desprender.
Este gesto de gratidão insere-se claramente numa hora de despedida. Há quem pense que em cada dia há um eterno adeus. Mas esta despedida denuncia já a saudade da casinha, do colo das mães, do afecto dos pais, da compreensão serena dos avós... do cão, do gato, da brisa do nosso mar, também das aulas nesta nova fase da vida de cada um, e das novidades que todas estas mudanças anunciam.
Também é por isso que continuo a gostar mesmo muito de ir à escola!
7. Silêncio: mística e ambiguidade
Beijing, 17 de Setembro 2024
O silêncio talvez seja a forma mais sublime da audição e simultaneamente uma dimensão complexa da experiência humana carregada de significados e emoções. Temos dois provérbios que expressam bem a mística e a ambiguidade do silêncio: «quem cala consente», «quem cala vence». Mas apesar disso, se tivéssemos de encontrar um sinónimo para expressar a nossa espiritualidade possivelmente «silêncio» seria adequado, especialmente nesta nossa era dominada por «uma sociedade do cansaço» como a designa Tolentino de Mendonça: essencialmente cansados de imagens, cansados de ruídos que acentuam um desgaste ocupacional, que desertifica o verdadeiro sentido do humano e a nossa capacidade de escutar.
Desde a Antiguidade, filósofos, artistas e poetas têm refletido sobre sua natureza, reconhecendo que o silêncio pode ser tanto um espaço de contemplação quanto uma manifestação de opressão. Ao explorarmos a mística e a ambiguidade do silêncio, percebemos que é uma linguagem própria, um diálogo profundo entre o ser humano e o mundo. No entender de Safo, a poetisa da ilha de Lesbos, é «um amigo que nunca trai».
Em primeiro lugar, o silêncio pode ser visto como um estado de vivência plena em que a mística da escuta se afina. Neste espaço, os ruídos perdem o seu peso e o espírito desperta para uma quietude livre de aprisionamentos e contaminações, permitindo uma ligação mais íntima entre o eu interior e a «res» (as coisas) exteriores. A meditação, por exemplo, serve-se do silêncio como ferramenta para religar o sujeito com o transcendente. O mesmo sucede com as experiências científicas de que o homem tem sido protagonista. Imaginemos Isaac Newton no seu jardim, na calma serena de uma tarde de fim de verão, as macieiras prenhes de frutos já maduros e eis que um deles se desprende. Foi nesse silêncio de laboratório natural que Newton observou o fenómeno e a partir daí formulou as leis da gravidade. A questão é: isso poderia ter sucedido num ambiente ruidoso? No primeiro caso, o silêncio torna-se um portal para a reflexão e o autoconhecimento. No segundo, para a teorização e disseminação do conhecimento. Assim, o silêncio é místico e racional, dado que nos aproxima do transcendente e do natural, do que é subtil e invisível, do que é tangível e racional.
Contudo, essa mesma qualidade do silêncio também traz consigo outra ambiguidade. Enquanto pode ser um convite à introspeção, ao lazer, ao trabalho e à descoberta, pode, ao mesmo tempo, ser um veículo de isolamento e incompreensão. Séneca, pensador eivado de espírito epicurista, com horror ao furor individual dos tiranos e ao inconsciente brutal das massas, aconselhava seguir a máxima: «perante a cólera nada mais é conveniente do que o silêncio». Por exemplo, em situações de conflito, o silêncio pode ser também um sinal de raiva ou descontentamento, um espaço onde as palavras são cuidadosamente omitidas, mas que, paradoxalmente, muito dizem.
Em segundo lugar, há que considerar o silêncio como resultado da opressão. Martin Luther King coloca a questão entre maus e bons ao afirmar que «o que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons». Na verdade, nos regimes autoritários, o silêncio é imposto, é o resultado do controle ideológico, político e social. A censura silencia vozes dissidentes, e o medo inibe aqueles que ousam expressar as suas ideias. Neste contexto, o silêncio não é apenas uma ausência de ruído, mas uma negação da voz e da identidade. Portanto, a mística do silêncio, que inicialmente parece ser um espaço sagrado, pode também ser um espaço profano de dor. É comum vermos manifestações em que aparecem pessoas amordaçadas e desfilam em silêncio, gritando o seu protesto. Ou os jovens que em 1989, na praça de Tiananmen desafiaram a ditadura comunista da China e como já sabemos é omitida, silenciada. Desta forma, mesmo em situações de opressão, o silêncio é um ato de resistência. Pode transformar-se num grito invisível que ressoa nas almas daqueles que não têm voz.
Em terceiro lugar, a mística do silêncio também se reflete na arte, na literatura e na ciência, como já vimos. Escritores, artistas e cientistas exploram o silêncio como um tema central, utilizando-o para transmitir emoções complexas e verdades universais. A música, por exemplo, é intensamente afetada pelo silêncio, pois uma pausa pode ser tão expressiva quanto uma nota ou um acorde. No teatro e no cinema, os momentos de silêncio carregam uma carga emocional que muitas vezes expressam mais do que os diálogos elaborados. Ninguém duvida de que Camões escreveu a sua obra em silêncio. Picasso pintou a Guernica e tanto mais em silêncio. Os cientistas escutam as leis naturais e cósmicas em silêncio. O programador informático trabalha em silêncio. O silêncio tem sido um recurso criativo, uma forma de instigar a imaginação, provocar a reflexão e a descoberta.
Por fim, a mística e a ambiguidade do silêncio inspiram-nos a questionar o que ele realmente representa nas vidas individuais. Pode ser um espaço de paz ou de opressão, um ato de resistência ou um sinal de resignação. O importante é reconhecer que, independentemente da sua forma, a capacidade de escutar é uma parte intrínseca da experiência humana. Paradoxal, mas a pedagogia do silêncio é deveras importante e ensina-nos que, muitas vezes, é na ausência de palavras, sons e ruídos que encontramos as verdades mais profundas. Portanto, se nos encontrarmos com ele, sejamos sensíveis às suas manifestações e reconheçamos a riqueza que pode trazer às nossas vidas. O silêncio, afinal, é uma linguagem poderosa que nos convida a escutar o outro, a natureza, o universo, mas, mais importante, também o que ecoa dentro de nós.