A China entre o retrocesso e os desafios do futuro

Artigo de opinião escrito pelo Professor António Caselas, AE de Santa Catarina

     O papel (e a importância) da China na cena global é facilmente entendido para quem esteja minimente atento ao desenrolar dos acontecimentos políticos atuais. Impõe-se, contudo, neste momento, perceber o significado e as consequências da ascensão de Xi Jinping ao poder em 2012. Dentre múltiplos textos, pode ser indicado o recente livro "A Dança dos Ossos", Zigurate, 2024, e, em particular, o capítulo 10: «Patriotas» (pag. 230 e ss). Tal como Putin, Xi é um nostálgico do passado. E não apenas da China, mas da própria URSS. Essa nostalgia revelou-se perigosa na medida em que levou a um maior fechamento e controle totalitário, quer da China, quer da Rússia. Novas versões de antigas purgas e perseguições foram instauradas. Devido ao seu passado familiar (o pai de Xi foi vítima do regime maoísta), esperava-se que o filho revelasse uma maior abertura ideológica e um maior espírito pragmático, mas foi justamente o oposto que se verifica. Na verdade, Xi tem-se revelado como um nostálgico do regime repressivo de Mao e um estimulador da auréola mitológica do fundador da China ‘comunista’. A ‘revolução chinesa’ foi instigada e apoiada pela antiga URSS e Xi parece manter essa grata memória.
     O fechamento ideológico teve um suporte: o célebre e famigerado ‘documento 9’ (um documento secreto elaborado na primavera de 2013). Nele acentua-se a orientação propagandística e ideológica que permitiu recuperar o passado do regime como glorioso. A verdade, nesse documento, coincide com a visão de Xi, tal como no passado coincidiu com a visão de Mao. Uma verdade filtrada pela mentira, pela autocrítica perniciosa e pela ocultação da tragédia da Revolução Cultural. A verdade consiste, nessa visão, na narrativa mito-ideológica da propaganda. Sob o pretexto do combate prioritário à corrupção, inaugurou-se, na verdade, um ciclo de perseguições e de vigilâncias dos opositores ou daqueles que hesitavam em glorificar o regime. Detenções, desaparecimentos e permanentes vigilâncias (a partir de dispositivos digitais) passaram a ser rotina. A educação dos jovens passou a ser manipulada através de orientações ideológicas restritivas: «De 2017 em diante, todas as escolas secundárias foram obrigadas a utilizar os mesmos manuais para História, Língua Chinesa e Educação Moral» (pag. 248-249).
     A demonização do Japão (a partir da guerra do passado) e dos Estados Unidos da América retornou. As relações com a América foram-se deteriorando cada vez mais, não apenas no plano económico e comercial, mas também no plano ideológico e dos valores. A reivindicação de uma posição de relevo no atual contexto geopolítico levou a China a aproximar-se, cada vez mais, da Federação Russa. Percebe-se essa aproximação na situação da guerra de agressão russa contra a Ucrânia. As canções revolucionárias e o regresso da apetência pelo treino militar (estratégias que ecoam em todos os regimes totalitários) são privilegiadas na educação da juventude. Pode a China conciliar a sua pretensão em aceder a uma posição de maior destaque global (ao ponto de tentar substituir-se ao Estados Unidos) acentuando, simultaneamente, o seu regresso ao passado dogmático e repressivo? Pode a China libertar-se da mácula da Revolução Cultural sem o devido confronto com a verdade histórica? Pode a China libertar-se dos traços típicos dos regimes autoritários e declaradamente antidemocráticos? Ou, pelo contrário, uma maior aproximação à Rússia, Coreia do Norte e outras ditaduras de menor significado na cena mundial levará à recuperação de uma perniciosa imagem do passado?
A ocultação e pretendido esquecimento do significado da Revolução Cultural é essencial: Xi renega o período mais negro da história do seu país. Uma época em que Mao incentivou e se envolveu pessoalmente num extenso e brutal crime político. Uma sequência de torturas e de assassinatos arbitrários em que jovens assumiram a posição de impiedosos carrascos. Se o regime maoísta (tal como outros regimes totalitários de orientação ‘comunista’) considera essencial a autocrítica (uma espécie de confissão ideológica regeneradora) seria essencial que esse processo se estendesse ao fenómeno da Revolução Cultural. Pelo contrário, Xi continua a instrumentalizar esse crime para efeitos de propaganda ideológica. Esquece e deturpa o seu sentido para erigir uma falsa e patética glorificação do regime e do partido único que o suporta. A extensão vitalícia do poder do presidente é, igualmente, um indicador muito negativo. Reforça a ideia que se trata de uma ditadura pessoal que se aproxima da tirania. O poder ilimitado e sem término temporal torna a China num regime político absurdo no século XXI. Numa época de retrocessos e de empoderamento de neofascismos e populismos, deparamos, assim, com um regime poderoso e politicamente inaceitável.

 

Linda-a-Velha, setembro de 2024